quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Afinal as universidades tiveram cativações em 2010??????

Desta vez é no Público:
Universidades esperam reposição dos 20 milhões de euros cativos em 2011 - Educação - PUBLICO.PT 


Escrevi em 2010 um artigo que, por ser "muito grande", teve que ser encurtado e saiu em versão raquítica no JN. Reproduzo-o a seguir. Mas primeiro convido quem estiver interessado a ver o vídeo seguinte, sobre as cativações que "não existiram". Afinal o CRUP quer receber quais 20%? ;-)
http://www.youtube.com/watch?v=jxkkfGOUbfw



O barulho das luzes ensurdece:
pequena tragédia marítima das universidades no mar revolto das "crises"


Palavras chave: financiamento, confiança, autonomia

O contrato de confiança celebrado com as universidades públicas não contém nenhuma cláusula que diga respeito à (re)definição da autonomia universitária. Nem poderia, já que a autonomia é um princípio constitucional, concretizado através da Lei da Assembleia da República que estabelece o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES).
Nesta Lei diz-se claramente que são receitas das instituições as provenientes do pagamento de propinas e outras taxas de frequência de ciclos de estudos. Também se diz que estas receitas são geridas pelas instituições conforme critérios por si estabelecidos.
Estas disposições são o resultado do reconhecimento, desde há muito tempo, de que as universidades não podem exercer com efectividade a sua missão de investigar e formar quadros qualificados, nem tão-pouco prestar serviços especializados ao exterior que o mercado não tem competências para prestar, sem a autonomia que aquelas disposições concretizam. Não cabe na cabeça de ninguém, por exemplo, que uma universidade celebre um contrato com uma empresa e não possa administrar livremente a receita desse contrato, sem constrangimentos relativos aos saldos transitados entre anos, para conseguir cumprir as suas obrigações contratuais.
Por outro lado, as receitas de propinas e outras taxas são uma contribuição dos estudantes e das respectivas famílias para assegurar o funcionamento das universidades. Longe vai o tempo em que um ministro de quem já poucos se lembram introduziu as propinas no ensino superior com o pretexto de que se destinavam a melhorar a qualidade do ensino. As propinas sempre foram pensadas para financiarem o funcionamento das universidades e quem disser o contrário ou mente ou é ingénuo. Por isso, o facto de serem receitas geridas pelas universidades segundo critérios por si estabelecidos nem sequer é nada demais. Se não fossem as propinas as universidades não teriam hoje condições para funcionar. Nestas circunstâncias, os estudantes são responsáveis por uma parte substancial do financiamento das suas universidades e é mais que legítimo que esperem que essa contribuição se destine, se não a melhorias de qualidade, a garantir que têm condições mínimas de estudo e aprendizagem.
Se não fossem as propinas e os saldos que algumas universidades possuiam quando foi introduzida a obrigatoriedade de pagamentos à Caixa Geral de Aposentações, teria ocorrido o colapso financeiro das instituições. Recorde-se que, quando o pagamento à CGA foi imposto ao poder local, as autarquias receberam um reforço orçamental para que este pagamento pudesse ser efectuado de forma neutra, sem impacto nas suas finanças. No caso das universidades o pagamento foi imposto sem qualquer contrapartida. Primeiro 7,5% dos encargos de pessoal, depois 11%, a seguir 15%. Às instituições que tinham práticas de gestão racional, com medidas de contenção de custos, foi especialmente penoso aguentar este sobreesforço financeiro, agravado com cortes orçamentais em simultâneo. Sim, porque não se tratou apenas de não compensar os encargos adicionais impostos com a CGA. Tratou-se de, adicionalmente, em simultâneo, fazer cortes orçamentais às universidades! Finalmente, ao fim de vários anos de estrangulamento, quando a exaurida capacidade financeira das universidades fazia recear o pior, o contrato de confiança veio entregar às instituições, não sem lhes exigir novas metas, as verbas necessária para custear os pagamentos à CGA.
O exercício da autonomia em ambiente de escassez extrema é quase ficção. Onde está a autonomia se a capacidade para decidir se resume a identificar que projectos ou actividades devem ser cancelados por falta de financiamento? Esta realidade só não se tornou dramática porque as universidades se esforçam com sucesso, há muito, de modo crescente, para encontrar financiamentos adicionais baseados em actividade contratual com empresas e financiadores de ciência.
Como um mal nunca vem só, a esta crise artificialmente provocada ao ensino superior sobreveio a crise financeira mundial, a agravar a já periclitante situação financeira da economia nacional, depauperada por uma dívida pública sempre crescente, "contra" a qual sempre têm sido usadas, com uma argúcia estarrecedora, políticas que restringem o crescimento económico. O alegado combate ao défice traduz-se em medidas para a redução da despesa que, paradoxalmente, só parecem ter efeito em sectores onde o esforço de racionalização já está em níveis que não permitem obter ganhos visíveis. As universidades consomem cada ano menos recursos e, em contraste, o défice nacional aumenta sempre. Aliás, se a redução do défice nacional fosse proporcional ao resultado da contracção da despesa nas universidades, o nosso país estaria neste momento numa situação de grande desafogo, sem que a Alemanha se lembrasse sequer de nos levantar a voz.
O Decreto-lei da execução orçamental de 2010 (note-se que um Decreto-lei está abaixo de uma Lei da AR na hierarquia dos diplomas legais), nesta linha do combate ao défice, determina que 20% das receitas de taxas, multas e outras penalidades, dos "serviços e fundos autónomos", sejam integrados em saldos. Isto significa que, virtualmente, estas verbas não podem ser mobilizadas. De facto, como em cada ano o saldo não pode ser inferior ao do ano anterior, em cada ano seguinte as verbas disponíveis para despesa ficam logo mais limitadas à partida, a menos que a receita cresça muito acima do normal. Este diploma também estabelece que as cativações e reservas só podem ser utilizadas por despacho do ministro das finanças.
Ora, na consideração do ministério das finanças, as universidades são "fundos autónomos ". O que quer que isso queira dizer, corresponde a algo que seguramente não tem a autonomia que o RJIES confere às universidades. Esta consideraração das universidades de forma indiferenciada com outros organismos da administração, com missões e funcionamento radicalmente diferentes, leva à aplicação de regras que, não se coadunando com a natureza das actividades das universidades nem com o respectivo enquadramento legal, lhes dificultam a concretização da missão. O que não impede, antes estimula, uma resistência inteligente das universidades, não abdicando de exigir a racional diferenciação que se deveria meter pelos olhos dentro e cuja esfíngica denegação, no entanto, parece perenizar-se.
É neste contexto geral que pode ser interpretado o despacho do secretário de estado do orçamento que autoriza (!) as universidades a utilizar as verbas correspondentes àquela reserva de 20%. Em primeiro lugar, reafirma a obrigatoriedade da constituição desta reserva pelas universidades. Recorde-se que o RJIES, em contraste, consagra que as propinas são receitas das instituições e que são geridas por elas conforme critérios por si estabelecidos. A conjugação desta obrigatoriedade com aquela autorização constituem uma inovação do maior significado na autonomia universitária. De facto, não se trata apenas do desaparecimento puro e simples do princípio da gestão autónoma da receita desta natureza, na justa medida da obrigatoriedade da constituição da reserva. É que até aqui as universidades tinham apenas a tutela do seu próprio ministério, que não interfere na gestão financeira autónoma de cada universidade. A partir de agora passam a ter a tutela explícita do ministério das finanças! Dependem de autorização deste ministério para gerirem as suas receitas, que a Lei determina que sejam elas próprias a gerir segundo o seu critério. Inovação de monta, de facto! Morte da autonomia, óbvia.
Dir-se-á, com pragmatismo: "mas, afinal, sempre se pode ir usando o dinheiro, desde que se demonstre compatibilidade com os critérios definidos pelo ministério das finanças". Entre pragmatismo e princípios, entre curto prazo e longo prazo, cada um faz as escolhas que entende. E sujeita-se às consequências. Dir-se-á: "este ministro até tem boa-vontade; afinal, as universidades até estão a ser tratadas de modo diferente" - perspectiva pragmática e de curto prazo: abdica-se do princípio da autonomia hoje e, amanhã, com um ministro menos "compreensivo" ou com o mesmo ministro mais aflito, a autonomia já será coisa do passado. E, no dia-a-dia, a gestão das universidades passa a fazer-se em função do que se antecipa que venham a ser os raciocínios do ministro das finanças e não em função do que se considera adequado à missão da universidade. São escolhas.
Finalmente, convém apreender o significado de reter 20% da receita de propinas. Apesar de a sua família pagar impostos, quando um estudante do ensino superior pagar as suas propinas tem desde logo garantido que 20% do que entrega à sua universidade pode, com boa probabilidade, nunca vir a ser usado por esta para lhe garantir condições de estudo e aprendizagem. Com boa probabibilidade esses 20% ficarão congelados num saldo que o PEC se encarregará de mobilizar, num futuro incerto, para outros fins eventualmente alheios à função da universidade.
Pode-se perceber por que se criam estes labirintos: é que eles são difíceis de destrinçar e o cidadão comum tem outras preocupações, do quotidiano, muitas e cada vez maiores, que lhe influenciam a vida e, assim, não dá conta do essencial e não se indigna. Mas, ainda que retoricamente, sempre se pode dizer que seria tudo muito mais simples se revissem a Constituição para eliminar o princípio da autonomia universitária, se revissem o RJIES para transformar as universidades em departamentos directamente dependentes do ministério das finanças ou de outro qualquer e, finalmente, se nomeassem um director regional, ou um director de serviços, para gerir cada universidade. Acabavam-se os equívocos e os aborrecimentos.


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